O cantinho da Tia Fê

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

50 questões básicas sobre

Construtivismo

Revista NOVA ESCOLA

Março de 1995

1 — O que é o construtivismo?

É o nome pelo qual se tomou conhecida uma nova linha pedagógica que vem ganhando terreno nas salas de aula há pouco mais de uma década. As maiores autoridades do construtivismo, contudo, não costumam admitir que se trate de uma pedagogia ou método de ensino, por ser um campo de estudo ainda recente, cujas práticas, salvo no caso da alfabetização, ainda requerem tempo para amadurecimento e sistematização.

2- Em que se distingue a pedagogia construtivista, em linhas gerais?

O construtivismo propõe que o aluno participe ativamente do próprio aprendizado, mediante a experimentação, a pesquisa em grupo, o estímulo à dúvida e o desenvolvimento do raciocínio, entre outros procedimentos. Rejeita a apresentação de conhecimentos prontos ao estudante, como um prato feito, e utiliza de modo inovador técnicas tradicionais como, por exemplo, a memorização. Daí o termo "construtivismo", pelo qual se procura indicar que uma pessoa aprende melhor quando toma parte de forma direta na construção do conhecimento que adquire. O construtivismo enfatiza a importância do erro não como um tropeço, mas como um trampolim na rota da aprendizagem. O construtivismo condena a rigidez nos procedimentos de ensino, as avaliações padronizadas e a utilização de material didático demasiadamente estranho ao universo pessoal do aluno.

3 — Com base em que o construtivismo adota tais praticas?

Com base nos estudos do psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980),. a maior autoridade do século sobre o processo de funcionamento da inteligência e de aquisição do conhecimento. Piaget demonstrou que a criança raciocina segundo estruturas lógicas próprias. que evoluem conforme faixas etárias definidas, e são diferentes da lógica madura do adulto. Por exemplo: se uma criança de 4 ou 5 anos transforma uma bolinha de massa em salsicha. ela conclui que a salsicha. por ser comprida, contém mais massa do que a bolinha. Não se trata de um erro, como se julgava antes de Piaget, mas de um raciocínio apropriado a essa faixa etária. O construtivismo procura desenvolver práticas pedagógicas sob medida para cada degrau de amadurecimento intelectual da criança.

4 — Piaget criou o construtivismo?

Nada mais falso. Ao contrário do que muitos imaginam, ele nunca se preocupou em formular uma pedagogia: dedicou a vida a investigar os processos da inteligência. Outros especialistas é que se valeram das suas descobertas para desenvolver propostas pedagógicas inovadoras.

5 — De onde vem, então, o construtivismo?

Quem adotou e tornou conhecida a expressão foi uma aluna e colaboradora de Piaget. a psicóloga Emilia Ferreiro. nascida na Argentina em 1936 e que atualmente mora no México. Partindo da teoria do mestre, ela pesquisou a fundo, e especificamente. o processo intelectual pelo qual as crianças aprendem a ler e a escrever, batizando de construtivismo sua própria teoria.

6 — Então é ela a autora da pedagogia construtivista?

Não. A exemplo de Piaget, Emilia se limitou a desenvolver uma teoria científica. Outros especialistas é que vêm utilizando suas descobertas, assim como as de Piaget. para formular novas propostas pedagógicas. No começo, o nome construtivismo se aplicava só à teoria de Emilia. Com o tempo, passaram a ser chamadas de construtivistas as novas propostas pedagógicas inspiradas em sua teoria, a própria teoria de Piaget e ate mesmo pedagogias anteriores, porem compatíveis, como a do educador soviético Lev Vvgotsky (1896-1934).

7 — O que a teoria de Emilia Ferreiro sustenta?

A pesquisadora aplicou a teoria mais geral de Piaget na investigação dos processos de aprendizado da leitura e da escrita entre crianças na faixa de 4 a 6 anos. Constatou que a criança aprende segundo sua própria lógica e segue essa lógica até mesmo quando ela se choca com a lógica do método de alfabetização. Em resumo, as crianças não aprendem do jeito que são ensinadas. A teoria de Emilia abriu aos educadores a base científica para a formulação de novas propostas pedagógicas de alfabetização sob medida para a lógica infantil.

8 Qual é a lógica infantil na alfabetização, segundo Emilia Ferreiro?

A pesquisadora constatou uma sequência lógica básica na faixa de 4 a 6 anos. Na primeira fase, a pré-silábica. a criança não consegue relacionar as letras com os sons da língua falada e se agarra a uma letra mais simpática para "escrever". Por exemplo, pode escrever Marcelo como MMMMM ou AAAAAA. Na fase seguinte, a silábica, já interpreta a letra à sua maneira, atribuindo valor silábico a cada uma (para ela. MCO pode ser a grafia de Mar-ce-lo. em que M=mar, C=ce e 0=l0). Um degrau acima, já na fase silábico-alfabética, mistura a lógica da fase anterior com a identificação de algumas sílabas propriamente ditas. Por fim, na última fase, a alfabética, passa a dominar plenamente o valor das letras e silabas.

9 — O construtivismo se aplica somente à alfabetização infantil?

Não. Ainda se encontra muito vinculado à alfabetização, porque foi por essa área que começou a ser desenvolvido, a partir da base teórica proporcionada por Emilia Ferreiro. Contudo, práticas construtivistas, devidamente adaptadas, já estão bastante difundidas até a quarta série do primeiro grau. A partir da quinta série, porém, quando cada disciplina passa a ser ministrada por um professor especializado, tais práticas são menos utilizadas, até pela relativa escassez ainda registrada de pesquisas teóricas equivalentes às de Emilia.

10 — Por que o construtivismo faz restrições à "prontidão" na alfabetização infantil?

Com base nas teorias de Piaget e Emilia Ferreiro, os construtivistas consideram inútil a prontidão, ou seja, o treinamento motor que habitualmente se aplica às crianças como preparação do aprendizado da escrita. Para eles, aprender a ler e escrever é algo mais amplo e complexo do que adquirir destreza com o lápis.

11 — O aluno formado pelo construtivismo fica bom de raciocínio, com mais senso crítico, porém mais fraco de conhecimentos?

Não é bem assim. Os construtivistas insistem em que, embora o construtivismo enfatize o processo de aprendizagem, este não ocorre desligado do conteúdo: simplesmente não há como formar um indivíduo crítico no vazio. Portanto, a aquisição de informações é fundamental.

12— Como o construtivismo transmite o conhecimento não passível de ser "construído" pelo aluno, como nomes de cidades ou de presidentes?

O construtivismo estimula a descoberta do conhecimento pelo aluno. Evita afogá-lo com informações prontas e acabadas, mas quando necessário não hesita em valer-se da memorização. Neste caso, a professora deve escolher o momento oportuno e criar situações interessantes para transmitir esses conhecimentos, fugindo assim da rigidez da prática tradicional.

13 O construtivismo requer mais atenção individual ao aluno do que outras linhas de ensino?

Sim, mas não com a obsessão que às vezes se imagina. Se o construtivismo admite que cada aluno tem o seu processo particular de aprendizagem, a professora deve conhecê-lo, acompanhá-lo e fazer as intervenções adequadas. Mas isso não quer dizer centralização total, ao contrário. O construtivismo valoriza muito o intercâmbio entre os alunos e o trabalho de grupo, em que a professora tem uma presença motivadora e menos impositiva.

14 Como a professora pode dar atenção individualizada em classes de 30 ou 40 alunos?

O ideal é que as classes não sejam tão numerosas. Mas, de qualquer modo, vale a alternativa de trabalhar com duplas ou trios, agrupando as crianças por habilidades parecidas ou opostas, a critério da professora. No construtivismo, a professora aproveita a individualidade de cada aluno para o enriquecimento do grupo.

15 Por que o construtivismo contesta o ensino dirigido?

Não é bem isso. O construtivismo considera a sistematização do ensino necessária, mas aplicada com bom senso e flexibilidade. Contesta, sim, que o currículo seja uma imposição unilateral, uma camisa-de-força, com etapas rígidas, sucessivas e inalteráveis. Não se aprende por pedacinhos, mas por mergulhos em conjuntos de problemas que envolvem vários conceitos ao mesmo tempo, afirmam os construtivistas.

16 — Por que a alfabetização construtivista rejeita o uso da cartilha?

Primeiro, porque a cartilha prevê etapas rígidas de aprendizagem, coisa que o construtivismo descarta. Segundo. porque os construtivistas acham que a linguagem geralmente usada nas cartilhas ("Bá-bé-bi". "Ivo viu a uva" etc.) é padronizada, artificial, distante do mundo conhecido pela criança.

17— Por que o construtivismo faz restrições aos livros didáticos?

Pelo fato de a maioria deles apresentar o conhecimento em sequência rígida, prevendo uma aprendizagem de conceitos baseada na memorização.

18— E ao ensino da tabuada?

O caso é diferente. A memorização é essencial para agilizar o cálculo mental, mas isso deve ocorrer após o aluno compreender o significado das operações aritméticas, como a multiplicação. O que os construtivistas não aceitam é a memorização puramente mecânica. conhecida como "decoreba".

19— E a restrição ao ensino de regras gramaticais?

O construtivismo contesta que o ensino da gramática seja o meio para se levar o aluno a entender e dominar o processo de escrever corretamente. Isso se adquire praticando a escrita, mesmo com erros gramaticais. A medida que o aluno vai dominando a escrita é que se passa a ensinar-lhe a gramática. As regras identificam certas regularidades da língua, mas para entendê-las é preciso tê-las percebido na prática.

20 — Por que o construtivismo, em geral, não aceita o uso de fórmulas, como as de matemática e as de sintaxe?

Não é que não aceite. A restrição é ao ensino de fórmulas como se fossem os conteúdos, pois elas não passam de esquemas sintéticos muito mais abstratos. A fórmula, em si mesma, não é o núcleo do conhecimento, mas aquilo que o sustenta.

21 — Qual é o papel da professora no construtivismo e em que difere do ensino tradicional?

Em vez de dar a matéria, numa aula meramente expositiva, a professora organiza o trabalho didático-pedagógico de modo que o aluno seja o co-piloto de sua própria aprendizagem. A professora fica na posição de mediadora ou facilitadora desse processo.

22 — O que é necessário para ser uma boa professora construtivista?

Mentalidade aberta, atitude investigativa. desprendimento intelectual, senso crítico, sensibilidade às mudanças do mundo combinada com iniciativa para torná-las significativas aos olhos dos alunos e flexibilidade para aceitar a si mesma em processo de mudança contínua. Ela precisa dar mais de si e precisa estar o tempo todo se renovando, para sustentar uma relação com os alunos que não se baseia na autoridade. mas na qualidade.

23 — A professora construtivista precisa de uma orientadora pedagógica?

Sim. A orientadora é importante, não para tutelar a professora, mas para servir de interlocutora com quem ela possa refletir sobre sua prática.

24 — É possível ser construtivista em uma escola tradicional?

Em geral, o projeto pedagógico de uma escola tradicional não favorece nem leva em conta o trabalho de uma professora que resolva tocar em outro tom. Embora seja difícil manter uma proposta individual num ambiente alheio a mudanças, há muitos casos assim. Além disso, deve-se considerar o fato de que é difícil uma escola passar a ser construtivista num só golpe. Isso ocorre de maneira paulatina, até porque o construtivismo, do mesmo modo que respeita os processos de transformação por que passam os alunos, também deve respeitar o das próprias professoras.

25 — Existem manuais que ensinem a ser construtivista?

Manuais, com tudo mastigado, não. Mas não falta material de apoio para que a professora comece a olhar seu trabalho de outro modo (leia bibliografia ao final deste texto). O fundamental, de qualquer maneira. é a prática. Calcula-se que são necessários ao menos dois anos de prática em classe, reforçados por reuniões semanais com outros colegas, para tornar-se uma boa professora construtivista.

26— Existem cursos que ensinem a ser construtivlsta?

Algumas instituições promovem cursos de extensão ou especialização, seminários, palestras e reuniões de estudo com essa finalidade. Mas atenção: nesses cursos não se ensina a ser construtivista. Neles se discute a prática da professora, de modo que ela ganhe elementos para encontrar seu próprio caminho, mais ou menos como depois irá fazer em relação ao aluno.

27 — Quais as vantagens do construtivismo sobre outras linhas de ensino?

Procura formar pessoas de espírito inquisitivo, participativo e cooperativo, com mais desembaraço na elaboração do próprio conhecimento. Além disso, o Construtivismo cria condições para um contato mais intenso e prazeroso com o universo da leitura e da escrita.

28 — Quais as desvantagens do construtivismo em relação a outras linhas de ensino?

Sendo uma concepção pedagógica nova e flexível, não oferece à professora instrumentos tão seguros e precisos com respeito ao seu trabalho diário. Ainda há muito por sistematizar, admitem os construtivistas.

29 As outras linhas de ensino não podem formar alunos tão bem ou mesmo melhor que o construtivismo?

Em termos de quantidade de conhecimento, sim. Quanto à qualidade do conhecimento, dificilmente, pois o construtivismo desperta no aluno um senso de autonomia e participação que não é comum em outras linhas pedagógicas, sustentam os construtivistas.

30 — O construtivismo forma o estudante com mais ou menos rapidez que outras linhas de ensino?

O construtivismo não dá exagerada importância a prazos rígidos. Na alfabetização construtivista, estima-se que um aluno do meio rural, que nunca viu nada escrito, precisa de dois a três anos para chegar a ler e escrever com eficiência. Já no meio urbano, um aluno de 7 anos, que convive intensamente com a escrita, leva algo em tomo de um ano e meio. Comparativamente, no ensino convencional, a maioria das crianças é capaz de soletrar e formar palavras em um ano - o que os construtivistas, contudo, não consideram alfabetização.

31 — Como a escola construtivista lida com a ansiedade de pais que percebem seus filhos atrasados em relação a crianças de outras escolas?

Aproximando os pais da escola, tenta-se demonstrar a eles quais as diferenças desta nova concepção de trabalho, comparando-a com o ensino tradicional. Pode não se tratar propriamente de um atraso, no sentido de deficiência no aproveitamento, mas de um outro ritmo de aprendizado que, ao final do ano, vai resultar numa vantagem qualitativa.

32-Um aluno formado exclusivamente dentro dos moldes construtivistas pode competir em igualdade de condições em vestibulares e concursos públicos?

A resposta é arriscada, pois ainda há muito poucos alunos formados exclusivamente pelo construtivismo em idade de vestibular e não há pesquisas conhecidas a respeito.

33 — O construtivismo permite que os pais ajudem os filhos nas tarefas de casa?

Ponto polêmico. Alguns admitem que sim: se o jeito de ensinar dos pais for diferente do da escola, a criança tem a vantagem de dispor de outra forma de aprender. Outros, contudo, sustentam que a tarefa de casa é para ser realizada pelo aluno. A vantagem, aí, seria ele ter chance de experimentar uma situação rara para ele na escola, uma vez que a maioria das atividades em classe é realizada em grupo.

34 — Como é a avaliação do aluno no construtivismo?

O aluno é permanentemente acompanhado, pois a avaliação é entendida como um processo contínuo, diferente do sistema de provas periódicas do ensino convencional. Segundo os construtivistas, a avaliação tem caráter de diagnóstico - e não de punição, de certo ou errado, de exclusão. Além disso, a própria professora também se auto-avalia e modifica seus rumos.

35 — Em que difere a prova construtivista?

Ela tem peso menor que no ensino tradicional. Não é o único indicador do rendimento do aluno, que também é avaliado pelo desempenho rotineiro em classe. Além do mais, a prova não é uma peça estranha ao grupo, elaborada fora da sala de aula, por um especialista (geralmente um coordenador). Tal responsabilidade cabe à própria professora, que leva em conta aquilo que já foi efetivamente trabalhado na sala de aula.

36—O que significa o erro do aluno?

É tomado como um valioso indicador dos caminhos percorridos por ele para chegar até ali. A professora não está tão preocupada com o acerto da resposta apresentada pelo aluno, mas sobretudo com o caminho usado para chegar a ela. Em vez de ser um mero tropeço, o erro passa a ter um caráter construtivo, isto é, serve como propulsor para se buscar a conclusão correta.

37 O construtivismo não corrige o erro do aluno?

Corrige, mas sempre tomando o cuidado de que a correção se transforme numa situação de aprendizagem, e não de censura. Por exemplo, no início do ano a professora pede aos alunos que escrevam um texto e guardem o material corrigido. No fim do ano, pede uma nova redação sobre o mesmo tema. Então, junto com os alunos. compara os dois trabalhos, ressaltando os progressos ocorridos. No ensino tradicional, o erro deixa menos vestígios no caderno do aluno, pois é corrigido, apagado, à medida que aparece.

38—O construtivismo reprova?

Sim, quando o aluno se encontra em tal atraso em relação ao resto da turma, que fazê-lo passar de ano seria lançá-lo numa situação muito desagradável. De qualquer modo, tenta-se evitar que a criança viva a reprovação como um atestado de sua incapacidade ou como castigo por não ter aprendido.

39 Os alunos transferidos de uma escola construtivista para outra, não-construtivista, acompanham mal a nova turma?

Os construtivistas não reconhecem a existência deste fenômeno, mas especulam que poderia tratar-se de uma pura e simples questão de adaptação, e não de despreparo. Os alunos podem achar a nova escola desinteressante, não gostar da postura da professora ou estranhar os métodos de avaliação.

40 O aluno educado no construtivismo é mais sujeito a cometer erros do português?

No inicio do construtivismo isso ocorria com freqüência. porque os professores se preocupavam mais com o conteúdo do texto do que com a ortografia - falha que passaram a corrigir nos últimos cinco anos.

41 — Por falta do treinamento motor (prontidão), as crianças alfabetizadas no construtivismo acabam fracas de caligrafia?

O construtivismo sustenta que não, pois o treinamento delas se faz à medida que vão escrevendo. Algumas escolas chegam ainda a lançar mão do velho caderno de caligrafia, como no ensino tradicional, quando a criança tem letra ruim.

42 O construtivismo desestimula a competição entre os alunos?

Sim, pois uma de suas linhas mestras repousa justamente na cooperação entre eles. No entanto, mesmo pondo de lado a competição, o construtivismo investe no desafio pessoal, como motivação para a criança ir sempre avante nas trilhas do conhecimento

43 A sala de aula numa escola construtivista é mais barulhenta e agitada do que na tradiconal?

Em termos. O que ocorre é que as crianças não são passivas. mas sim estimuladas a participar, dizem os construtivistas

44 — As crianças não tendem a ficar indisciplinadas, malcriadas e incapazes de ouvir o outro, em consequência de uma educação construtivista?

Caso elas tendam à indisciplina e ao desrespeito a outra pessoa, seja colega ou professor, terá falhado um dos pilares do construtivismo, argumentam seus praticantes, pois o que se enfatiza é justamente a reciprocidade na fixação de regras, no escutar e no ouvir, nos direitos e deveres, nos princípios básicos da cidadania e da democracia.

45 — O professor construtivista deixa os alunos fazerem o que bem entendem em classe?

Não. A sala de aula é um espaço com regras de funcionamento e de convivência. O superliberalismo pedagógico destoa das concepções do construtivismo.

46 — O construtivismo pune alunos indisciplinados?

Sim, porém o caráter dessa punição, dentro do possível, deve ser, digamos, "construtivo" - deve buscar a reciprocidade e a reparação. Por exemplo, se uma criança rasga um livro, deve consertá-lo. De todo modo. em casos mais graves, admite-se até a tradicional suspensão.

47 Como o construtivismo se espalhou?

As bases teóricas foram estruturadas na primeira metade deste século, com Piaget e os psicólogos soviéticos, entre os quais Lev Vygotsky é o mais divulgado no Brasil. As pontes para a prática pedagógica se consolidaram com Emilia Ferreiro e seus colaboradores, a partir do final da década de 1970. Na década seguinte, o construtivismo se disseminou na América Latina, principalmente na Argentina e no Brasil. As experiências brasileiras mais expressivas foram registradas nas redes municipais de Porto Alegre e de São Paulo, assim como no ciclo básico (as duas primeiras séries) da rede estadual paulista.

48 — O construtivismo passou por mudanças desde que começou a ser adotado no Brasil?

Sim. A fase inicial, em que o aluno era deixado muito solto, como se a professora não estivesse na sala de aula (prática espontaneísta). está superada. Hoje se quer do professor uma atuação firme e planejada (prática intervencionista). No geral, contudo, o núcleo pedagógico do construtivismo permanece inalterado.

49 — A interdisciplinaridade tem alguma relação com o construtivismo?

Sim, embora a interdisciplinaridade seja uma prática pedagógica autônoma e anterior ao construtivismo. Como nenhum professor, por mais ampla que seja a sua formação, pode dominar todos os conhecimentos envolvidos na tarefa de lecionar, o trabalho interdisciplinar é recomendado para todo e qualquer nível.

50— É feio não ser construtivista?

Não, absolutamente. Feio é não ser autêntica e não se preocupar em dar o melhor aos alunos, seja de si mesma. seja das múltiplas áreas do conhecimento. Feio, enfim, é ser má professora.

BIBLIOGRAFIA

Psicogênese da língua Escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. Ed. Artes Médicas, Av.

Jerônimo Ornellas. 670. CEP 90040-340. Porto Alegre. RS. Tel: (051) 330-3444/330-2183

A Escrita e a Escola, de Ana Maria Kaufman. Ed. Artes Médicas.

Alfabetização em Processo, de Emilia Ferreiro. Ed. Cortez. R. Bartira. 387. CEP 05009-000. São Paulo. SP. Tel: (011) 864-0111.

Ensaios Construtivistas, de Lino de Macedo. Ed. Casa do Psicólogo. R. Alves Guimarães, 436, CEP 05410-000. São Paulo, SP, Tel: (011) 852-4633.

Aprendendo a Escrever: Perspectivas Psicológicas e Implicações Educacionais, de Ana Teberosky. Ed. Ática. R. Barão de Iguape. 110. CEP: 01507-900, caixa postal 8656, São Paulo, SP. Tel: (011) 278-9322.

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Construtivismo – Interacionismo (Piaget)
  • Conhecimento e aprendizagem a partir das interações entre o indivíduo e o meio
  • Ênfase no processo e não no produto
  • Preocupação com a gênese dos processos de aprendizagem


Sócio-interacionismo (Vygotsky)
  • Conhecimento e aprendizagem a partir das interações entre o indivíduo e o meio – um sujeito contextualizado historicamente e culturalmente
  • Ênfase no processo e não no produto
  • Aprendizagem e desenvolvimento acontecem juntos
  • Destaca o papel do contexto histórico e cultural nos processos de desenvolvimento e aprendizagem
  • Enfatiza o papel da linguagem
  • Cria o conceito de zona de desenvolvimento proximal

A importância do lúdico na aprendizagem

O lúdico tem sua origem na palavra latina "ludus" que quer dizer "jogo”. Se se achasse confinado a sua origem, o termo lúdico estaria se referindo apenas ao jogar, ao brincar, ao movimento espontâneo. O lúdico passou a ser reconhecido como traço essencial de psicofisiologia do comportamento humano. De modo que a definição deixou de ser o simples sinônimo de jogo. As implicações da necessidade lúdica extrapolaram as demarcações do brincar espontâneo. (ALMEIDA)

O Lúdico apresenta valores específicos para todas as fases da vida humana. Assim, na idade infantil e na adolescência a finalidade é essencialmente pedagógica. A criança e mesmo o jovem opõe uma resistência à escola e ao ensino, porque acima de tudo ela não é lúdica, não é prazerosa. (NEVES)

Segundo PIAGET, o desenvolvimento da criança acontece através do lúdico. Ela precisa brincar para crescer, precisa do jogo como forma de equilibração com o mundo (BARROS).

Para VITAL DIDONET “é uma verdade que o brinquedo é apenas um suporte do jogo, do brincar, e que é possível brincar com a imaginação. Mas é verdade, também, que sem o brinquedo é muito mais difícil realizar a atividade lúdica, porque é ele que permite simular situações”. (BERTOLDO, RUSCHEL)

A ludicidade, tão importante para a saúde mental do ser humano é um espaço que merece atenção dos pais e educadores, pois é o espaço para expressão mais genuína do ser, é o espaço e o direito de toda a criança para o exercício da relação afetiva com o mundo, com as pessoas e com os objetos.

O lúdico possibilita o estudo da relação da criança com o mundo externo, integrando estudos específicos sobre a importância do lúdico na formação da personalidade. Através da atividade lúdica e do jogo, a criança forma conceitos, seleciona idéias, estabelece relações lógicas, integra percepções, faz estimativas compatíveis com o crescimento físico e desenvolvimento e, o que é mais importante, vai se socializando.

A convivência de forma lúdica e prazerosa com a aprendizagem proporcionará a criança estabelecer relações cognitivas às experiências vivenciadas, bem como relacioná-la as demais produções culturais e simbólicas conforme procedimentos metodológicos compatíveis a essa prática.

De acordo com Nunes, a ludicidade é uma atividade que tem valor educacional intrínseco, mas além desse valor, que lhe é inerente, ela tem sido utilizada como recurso pedagógico. Segundo Teixeira 1995 (apud NUNES), várias são as razões que levam os educadores a recorrer às atividades lúdicas e a utilizá-las como um recurso no processo de ensino-aprendizagem:

• As atividades lúdicas correspondem a um impulso natural da criança, e neste sentido, satisfazem uma necessidade interior, pois o ser humano apresenta uma tendência lúdica;
• O lúdico apresenta dois elementos que o caracterizam: o prazer e o esforço espontâneo.

Ele é considerado prazeroso, devido a sua capacidade de absorver o indivíduo de forma intensa e total, criando um clima de entusiasmo. É este aspecto de envolvimento emocional que o torna uma atividade com forte teor motivacional, capaz de gerar um estado de vibração e euforia. Em virtude desta atmosfera de prazer dentro da qual se desenrola, a ludicidade é portadora de um interesse intrínseco, canalizando as energias no sentido de um esforço total para consecução de seu objetivo. Portanto, as atividades lúdicas são excitantes, mas também requerem um esforço voluntário;

• As situações lúdicas mobilizam esquemas mentais. Sendo uma atividade física e mental, a ludicidade aciona e ativa as funções psico-neurológicas e as operações mentais, estimulando o pensamento.

Em geral, o elemento que separa um jogo pedagógico de um outro de caráter apenas lúdico é este: desenvolve-se o jogo pedagógico com a intenção de provocar aprendizagem significativa, estimular a construção de novo conhecimento e principalmente despertar o desenvolvimento de uma habilidade operatória, ou seja, o desenvolvimento de uma aptidão ou capacidade cognitiva e apreciativa específica que possibilita a compreensão e a intervenção do indivíduo nos fenômenos sociais e culturais e que o ajude a construir conexões. (NUNES)

Brinquedo, brincadeira e jogo

Em todos os tempos, para todos os povos, os brinquedos evocam as mais sublimes lembranças. São objetos mágicos, que vão passando de geração a geração, com um incrível poder de encantar crianças e adultos. (VELASCO, 1996)

Diferindo do jogo, o brinquedo supõe uma relação intima com a criança e uma indeterminação quanto ao uso, ou seja, a ausência de um sistema de regras que organizam sua utilização. (KISHIMOTO, 1994)

O brinquedo contém sempre uma referência ao tempo de infância do adulto com representações vinculadas pela memória e imaginações. O vocábulo “brinquedo” não pode ser reduzido à pluralidade de sentidos do jogo, pois conota a criança e tem uma dimensão material, cultural e técnica. Enquanto objeto, é sempre suporte de brincadeira.

O brinquedo é a oportunidade de desenvolvimento. Brincando, a criança experimenta, descobre, inventa, aprende e confere habilidades. Além de estimular a curiosidade, a autoconfiança e a autonomia, proporcionam o desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da concentração e da atenção.

O brinquedo traduz o real para a realidade infantil. Suaviza o impacto provocado pelo tamanho e pela força dos adultos, diminuindo o sentimento de impotência da criança. Brincando, sua inteligência e sua sensibilidade estão sendo desenvolvidas. A qualidade de oportunidade que estão sendo oferecidas à criança através de brincadeiras e de brinquedos garante que suas potencialidades e sua afetividade se harmonizem.

Para Vygotsky (1994) citado por OLIVEIRA, DIAS, ROAZZI (2003), o prazer não pode ser considerado a característica definidora do brinquedo, como muitos pensam. O brinquedo na verdade, preenche necessidades, entendendo-se estas necessidades como motivos que impelem a criança à ação. São exatamente estas necessidades que fazem a criança avançar em seu desenvolvimento.

A brincadeira é alguma forma de divertimento típico da infância, isto é, uma atividade natural da criança, que não implica em compromissos, planejamento e seriedade e que envolve comportamentos espontâneos e geradores de prazer. Brincando a criança se diverte, faz exercícios, constrói seu conhecimento e aprende a conviver com seus amiguinhos.

A brincadeira transmitida à criança através de seus próprios familiares, de forma expressiva, de uma geração a outra, ou pode ser aprendida pela criança de forma espontânea (MALUF,2003).

É a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras de jogo, ao mergulhar na ação lúdica. Pode-se dizer que é o lúdico em ação. Dessa forma brinquedo e brincadeira relacionam-se diretamente com a criança e não se confundem com o jogo (KISHMOTO, 1994).

Para a criança, a brincadeira gira em torno da espontaneidade e da imaginação. Não depende de regras, de formas rigidamente estruturadas. Para surgir basta uma bola, um espaço para correr ou um risco no chão (VELASCO, 1996).

Segundo VYGOTSKY, a brincadeira possui três características: a imaginação, a imitação e a regra. Elas estão presentes em todos os tipos de brincadeiras infantis, tanto nas tradicionais, naquelas de faz-de-conta, como ainda nas que exigem regras (BERTOLDO, RUSCHEL).

A brincadeira não é um mero passatempo, ela ajuda no desenvolvimento das crianças, promovendo processos de socialização e descoberta do mundo (MALUF, 2003).

O jogo pode ser visto como: resultado de um sistema lingüístico que funciona dentro de um contexto social; um sistema de regras e um objeto.

No primeiro caso, o sentido do jogo depende da linguagem de cada contexto social. Enquanto fato social, o jogo assume a imagem, o sentido que cada sociedade lhe atribui. É este aspecto que nos mostra porque, dependendo do lugar e da época, os jogos assumem significações distintas.

No segundo caso, um sistema de regras permite identificar, em qualquer jogo, uma estrutura seqüencial que especifica sua modalidade. Tais estruturas seqüenciais de regras permitem diferenciar cada jogo, ou seja, quando alguém joga, esta executando as regras do jogo e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma atividade lúdica. O terceiro sentido refere-se ao jogo enquanto objeto.

Os três aspectos citados permitem uma primeira compreensão do jogo, diferenciando significados atribuídos por culturas diferentes, pelas regras e objetos que o caracterizam.

Através do jogo a criança: libera e canaliza suas energias; tem o poder de transformar uma realidade difícil; propicia condições de liberação da fantasia; é uma grande fonte de prazer. O jogo é, por excelência, integrador, há sempre um caráter de novidade, o que é fundamental para despertar o interesse da criança, e à medida em que joga ela vai conhecendo melhor, construindo interiormente o seu mundo. Esta atividade é um dos meios propícios à construção do conhecimento.

O jogo no processo de aprendizagem

O brincar e o jogar são atos indispensáveis à saúde física, emocional e intelectual e sempre estiveram presentes em qualquer povo desde os mais remotos tempo. Através deles, a criança desenvolvem a linguagem, o pensamento, a socialização, a iniciativa e a auto-estima, preparando-se para ser um cidadão capaz de enfrentar desafios e participar na construção de um mundo melhor. O jogo, nas suas diversas formas, auxilia no processo ensino-aprendizagem, tanto no desenvolvimento psicomotor, isto é, no desenvolvimento da motricidade fina e ampla, bem como no desenvolvimento de habilidades do pensamento, como a imaginação, a interpretação, a tomada de decisão, a criatividade, o levantamento de hipóteses, a obtenção e organização de dados e a aplicação dos fatos e dos princípios a novas situações que, por sua vez, acontecem quando jogamos, quando obedecemos a regras, quando vivenciamos conflitos numa competição, etc. (CAMPOS)

Segundo PIAGET (1967)citado por , “o jogo não pode ser visto apenas como divertimento ou brincadeira para desgastar energia, pois ele favorece o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e moral”. Através dele se processa a construção de conhecimento, principalmente nos períodos sensório-motor e pré-operatório. Agindo sobre os objetos, as crianças, desde pequenas, estruturam seu espaço e seu tempo, desenvolvendo a noção de casualidade, chegando à representação e, finalmente, à lógica. As crianças ficam mais motivadas para usar a inteligência, pois querem jogar bem, esforçam-se para superar obstáculos tanto cognitivos como emocionais.

O jogo não é simplesmente um “passatempo” para distrair os alunos, ao contrário, corresponde a uma profunda exigência do organismo e ocupa lugar de extraordinária importância na educação escolar. Estimula o crescimento e o desenvolvimento, a coordenação muscular, as faculdades intelectuais, a iniciativa individual, favorecendo o advento e o progresso da palavra. Estimula a observar e conhecer as pessoas e as coisas do ambiente em que se vive. Através do jogo o indivíduo pode brincar naturalmente, testar hipóteses, explorar toda a sua espontaneidade criativa. O jogo é essencial para que a criança manifeste sua criatividade, utilizando suas potencialidades de maneira integral. É somente sendo criativo que a criança descobre seu próprio eu (TEZANI, 2004).

O jogo é mais importante das atividades da infância, pois a criança necessita brincar, jogar, criar e inventar para manter seu equilíbrio com o mundo. A importância da inserção e utilização dos brinquedos, jogos e brincadeiras na prática pedagógica é uma realidade que se impõe ao professor. Brinquedos não devem ser explorados só para lazer, mas também como elementos bastantes enriquecedores para promover a aprendizagem. Através dos jogos e brincadeiras, o educando encontra apoio para superar suas dificuldades de aprendizagem, melhorando o seu relacionamento com o mundo. Os professores precisam estar cientes de que a brincadeira é necessária e que traz enormes contribuições para o desenvolvimento da habilidade de aprender e pensar. (CAMPOS)

O DESENVOLVIMENTO HUMANO NA TEORIA DE PIAGET

Márcia Regina Terra*

mterra@estadao.com.br

Apresentação

O estudo do desenvolvimento do ser humano constitui uma área do conhecimento da Psicologia cujas proposições nucleares concentram-se no esforço de compreender o homem em todos os seus aspectos, englobando fases desde o nascimento até o seu mais completo grau de maturidade e estabilidade. Tal esforço, conforme mostra a linha evolutiva da Psicologia, tem culminado na elaboração de várias teorias que procuram reconstituir, a partir de diferentes metodologias e pontos de vistas, as condições de produção da representação do mundo e de suas vinculações com as visões de mundo e de homem dominantes em cada momento histórico da sociedade.

Dentre essas teorias, a de Jean Piaget (1896-1980), que é a referência deste nosso trabalho, não foge à regra, na medida em que ela busca, como as demais, compreender o desenvolvimento do ser humano. No entanto, ela se destaca de outras pelo seu caráter inovador quando introduz uma 'terceira visão' representada pela linha interacionista que constitui uma tentativa de integrar as posições dicotômicas de duas tendências teóricas que permeiam a Psicologia em geral - o materialismo mecanicista e o idealismo - ambas marcadas pelo antagonismo inconciliável de seus postulados que separam de forma estanque o físico e o psíquico.

Um outro ponto importante a ser considerado, segundo estudiosos, é o de que o modelo piagetiano prima pelo rigor científico de sua produção, ampla e consistente ao longo de 70 anos, que trouxe contribuições práticas importantes, principalmente, ao campo da Educação - muito embora, curiosamente aliás, a intenção de Piaget não tenha propriamente incluído a idéia de formular uma teoria específica de aprendizagem (La Taille, 1992; Rappaport, 1981; Furtado et. al.,1999; Coll, 1992; etc.).

O propósito do nosso estudo, portanto, é tecer algumas considerações referidas ao eixo principal em torno do qual giram as concepções do método psicogenético de Piaget, o qual, segundo Coll e Gillièron (1987:30), tem como objetivo "compreender como o sujeito se constitui enquanto sujeito cognitivo, elaborador de conhecimentos válidos", conforme procuraremos discutir na seqüência deste trabalho.

1) A visão interacionista de Piaget: a relação de interdependência entre o homem e o objeto do conhecimento

Introduzindo uma terceira visão teórica representada pela linha interacionista, as idéias de Piaget contrapõem-se, conforme mencionamos mais acima, às visões de duas correntes antagônicas e inconciliáveis que permeiam a Psicologia em geral: o objetivismo e o subjetivismo. Ambas as correntes são derivadas de duas grandes vertentes da Filosofia (o idealismo e o materialismo mecanicista) que, por sua vez, são herdadas do dualismo radical de Descartes que propôs a separação estanque entre corpo e alma,id est, entre físico e psíquico. Assim sendo, a Psicologia objetivista, privilegia o dado externo, afirmando que todo conhecimento provém da experiência; e a Psicologia subjetivista, em contraste, calcada no substrato psíquico, entende que todo conhecimento é anterior à experiência, reconhecendo, portanto, a primazia do sujeito sobre o objeto (Freitas, 2000:63).

Considerando insuficientes essas duas posições para explicar o processo evolutivo da filogenia humana, Piaget formula o conceito de epigênese, argumentando que "o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas" (Piaget, 1976 apud Freitas 2000:64). Quer dizer, o processo evolutivo da filogenia humana tem uma origem biológica que é ativada pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social - que o rodeia (Coll, 1992; La Taille, 1992, 2003; Freitas, 2000; etc.), significando entender com isso que as formas primitivas da mente, biologicamente constituídas, são reorganizadas pela psique socializada, ou seja, existe uma relação de interdependência entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer.

Esse processo, por sua vez, se efetua através de um mecanismo auto-regulatório que consiste no processo de equilíbração progressiva do organismo com o meio em que o indivíduo está inserido, como procuraremos expor em seguida.

2) O processo de equilibração: a marcha do organismo em busca do pensamento lógico

Pode-se dizer que o "sujeito epistêmico" protagoniza o papel central do modelo piagetiano, pois a grande preocupação da teoria é desvendar os mecanismos processuais do pensamento do homem, desde o início da sua vida até a idade adulta. Nesse sentido, a compreensão dos mecanismos de constituição do conhecimento, na concepção de Piaget, equivale à compreensão dos mecanismos envolvidos na formação do pensamento lógico, matemático. Como lembra La Taille (1992:17), "(...) a lógica representa para Piaget a forma final do equilíbrio das ações. Ela é 'um sistema de operações, isto é, de ações que se tornaram reversíveis e passíveis de serem compostas entre si'".

Precipuamente, portanto, no método psicogenético, o 'status' da lógica matemática perfaz o enigma básico a ser desvendado. O maior problema, nesse sentido, concentra-se na busca de respostas pertinentes para uma questão fulcral: "Como os homens constróem o conhecimento?" (La Taille: vídeo). Imbricam-se nessa questão, naturalmente, outras indagações afins, quer sejam: como é que a lógica passa do nível elementar para o nível superior? Como se dá o processo de elaboração das idéias? Como a elaboração do conhecimento influencia a adaptação à realidade? Etc.

Procurando soluções para esse problema central, Piaget sustenta que a gênese do conhecimento está no próprio sujeito, ou seja, o pensamento lógico não é inato ou tampouco externo ao organismo mas é fundamentalmente construído na interação homem-objeto. Quer dizer, o desenvolvimento da filogenia humana se dá através de um mecanismo auto-regulatório que tem como base um 'kit' de condições biológicas (inatas portanto), que é ativado pela ação e interação do organismo com o meio ambiente - físico e social (Rappaport, op.cit.). Id est, tanto a experiência sensorial quanto o raciocínio são fundantes do processo de constituição da inteligência, ou do pensamento lógico do homem.

Está implícito nessa ótica de Piaget que o homem é possuidor de uma estrutura biológica que o possibilita desenvolver o mental, no entanto, esse fato per se não assegura o desencadeamento de fatores que propiciarão o seu desenvolvimento, haja vista que este só acontecerá a partir da interação do sujeito com o objeto a conhecer. Por sua vez, a relação com o objeto, embora essencial, da mesma forma também não é uma condição suficiente ao desenvolvimento cognitivo humano, uma vez que para tanto é preciso, ainda, o exercício do raciocínio. Por assim dizer, a elaboração do pensamento lógico demanda um processo interno de reflexão. Tais aspectos deixam à mostra que, ao tentar descrever a origem da constituição do pensamento lógico, Piaget focaliza o processo interno dessa construção.

Simplificando ao máximo, o desenvolvimento humano, no modelo piagetiano, é explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer. Esses fatores que são complementares envolvem mecanismos bastante complexos e intrincados que englobam o entrelaçamento de fatores que são complementares, tais como: o processo de maturação do organismo, a experiência com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio.

O conceito de equilibração torna-se especialmente marcante na teoria de Piaget pois ele representa o fundamento que explica todo o processo do desenvolvimento humano. Trata-se de um fenômeno que tem, em sua essência, um caráter universal, já que é de igual ocorrência para todos os indivíduos da espécie humana mas que pode sofrer variações em função de conteúdos culturais do meio em que o indivíduo está inserido. Nessa linha de raciocínio, o trabalho de Piaget leva em conta a atuação de 2 elementos básicos ao desenvolvimento humano: os fatores invariantes e os fatores variantes.

(a) Os fatores invariantes: Piaget postula que, ao nascer, o indivíduo recebe como herança uma série de estruturas biológicas - sensoriais e neurológicas - que permanecem constantes ao longo da sua vida. São essas estruturas biológicas que irão predispor o surgimento de certas estruturas mentais. Em vista disso, na linha piagetiana, considera-se que o indivíduo carrega consigo duas marcas inatas que são a tendência natural à organização e à adaptação, significando entender, portanto, que, em última instância, o 'motor' do comportamento do homem é inerente ao ser.

(b) Os fatores variantes: são representados pelo conceito de esquema que constitui a unidade básica de pensamento e ação estrutural do modelo piagetiano, sendo um elemento que se tranforma no processo de interação com o meio, visando à adaptação do indivíduo ao real que o circunda. Com isso, a teoria psicogenética deixa à mostra que a inteligência não é herdada, mas sim que ela é construída no processo interativo entre o homem e o meio ambiente (físico e social) em que ele estiver inserido.

Em síntese, pode-se dizer que, para Piaget, o equilíbrio é o norte que o organismo almeja mas que paradoxalmente nunca alcança (La Taille, op.cit.), haja vista que no processo de interação podem ocorrer desajustes do meio ambiente que rompem com o estado de equilíbrio do organismo, eliciando esforços para que a adaptação se restabeleça. Essa busca do organismo por novas formas de adaptação envolvem dois mecanismos que apesar de distintos são indissociáveis e que se complementam: a assimilação e a acomodação.

(a) A assimilação consiste na tentativa do indivíduo em solucionar uma determinada situação a partir da estrutura cognitiva que ele possui naquele momento específico da sua existência. Representa um processo contínuo na medida em que o indivíduo está em constante atividade de interpretação da realidade que o rodeia e, consequentemente, tendo que se adaptar a ela. Como o processo de assimilação representa sempre uma tentativa de integração de aspectos experienciais aos esquemas previamente estruturados, ao entrar em contato com o objeto do conhecimento o indivíduo busca retirar dele as informações que lhe interessam deixando outras que não lhe são tão importantes (La Taille, vídeo), visando sempre a restabelecer a equilibração do organismo.

(b) A acomodação, por sua vez, consiste na capacidade de modificação da estrutura mental antiga para dar conta de dominar um novo objeto do conhecimento. Quer dizer, a acomodação representa "o momento da ação do objeto sobre o sujeito" (Freitas, op.cit.:65) emergindo, portanto, como o elemento complementar das interações sujeito-objeto. Em síntese, toda experiência é assimilada a uma estrutura de idéias já existentes (esquemas) podendo provocar uma transformação nesses esquemas, ou seja, gerando um processo de acomodação. Como observa Rappaport (1981:56),

os processos de assimilação e acomodação são complementares e acham-se presentes durante toda a vida do indivíduo e permitem um estado de adaptação intelectual (...) É muito difícil, se não impossível, imaginar uma situação em que possa ocorrer assimilação sem acomodação, pois dificilmente um objeto é igual a outro já conhecido, ou uma situação é exatamente igual a outra.

Vê-se nessa idéia de "equilibração" de Piaget a marca da sua formação como Biólogo que o levou a traçar um paralelo entre a evolução biológica da espécie e as construções cognitivas. Tal processo pode ser representado pelo seguinte quadro:

ambiente

è

desequilíbrio

è

adaptação

è

equilibração majorante

í î

assimilação

acomodação


Dessa perspectiva, o processo de equilibração pode ser definido como um mecanismo de organização de estruturas cognitivas em um sistema coerente que visa a levar o indivíduo a construção de uma forma de adaptação à realidade. Haja vista que o "objeto nunca se deixa compreender totalmente" (La Taille, op.cit.), o conceito de equilibração sugere algo móvel e dinâmico, na medida em que a constituição do conhecimento coloca o indivíduo frente a conflitos cognitivos constantes que movimentam o organismo no sentido de resolvê-los. Em última instância, a concepção do desenvolvimento humano, na linha piagetiana, deixa ver que é no contato com o mundo que a matéria bruta do conhecimento é 'arrecadada', pois que é no processo de construções sucessivas resultantes da relação sujeito-objeto que o indivíduo vai formar o pensamento lógico.

É bom considerar, ainda, que, na medida em que toda experiência leva em graus diferentes a um processo de assimilação e acomodação, trata-se de entender que o mundo das idéias, da cognição, é um mundo inferencial. Para avançar no desenvolvimento é preciso que o ambiente promova condições para transformações cognitivas, id est, é necessário que se estabeleça um conflito cognitivo que demande um esforço do indivíduo para superá-lo a fim de que o equilíbrio do organismo seja restabelecido, e assim sucessivamente.

No entanto, esse processo de transformação vai depender sempre de como o indivíduo vai elaborar e assimilar as suas interações com o meio, isso porque a visada conquista da equilibração do organismo reflete as elaborações possibilitadas pelos níveis de desenvolvimento cognitivo que o organismo detém nos diversos estágios da sua vida. A esse respeito, para Piaget, os modos de relacionamento com a realidade são divididos em 4 períodos, como destacaremos na próxima seção deste trabalho.

3) Os estágios do desenvolvimento humano

Piaget considera 4 períodos no processo evolutivo da espécie humana que são caracterizados "por aquilo que o indivíduo consegue fazer melhor" no decorrer das diversas faixas etárias ao longo do seu processo de desenvolvimento (Furtado, op.cit.). São eles:

· 1º período: Sensório-motor (0 a 2 anos)

· 2º período: Pré-operatório (2 a 7 anos)

· 3º período: Operações concretas (7 a 11 ou 12 anos)

· 4º período: Operações formais (11 ou 12 anos em diante)

Cada uma dessas fases é caracterizada por formas diferentes de organização mental que possibilitam as diferentes maneiras do indivíduo relacionar-se com a realidade que o rodeia (Coll e Gillièron, 1987). De uma forma geral, todos os indivíduos vivenciam essas 4 fases na mesma seqüência, porém o início e o término de cada uma delas pode sofrer variações em função das características da estrutura biológica de cada indivíduo e da riqueza (ou não) dos estímulos proporcionados pelo meio ambiente em que ele estiver inserido. Por isso mesmo é que "a divisão nessas faixas etárias é uma referência, e não uma norma rígida", conforme lembra Furtado (op.cit.). Abordaremos, a seguir, sem entrar em uma descrição detalhada, as principais características de cada um desses períodos.

(a) Período Sensório-motor (0 a 2 anos): segundo La Taille (2003), Piaget usa a expressão "a passagem do caos ao cosmo" para traduzir o que o estudo sobre a construção do real descreve e explica. De acordo com a tese piagetiana, "a criança nasce em um universo para ela caótico, habitado por objetos evanescentes (que desapareceriam uma vez fora do campo da percepção), com tempo e espaço subjetivamente sentidos, e causalidade reduzida ao poder das ações, em uma forma de onipotência" (id ibid). No recém nascido, portanto, as funções mentais limitam-se ao exercício dos aparelhos reflexos inatos. Assim sendo, o universo que circunda a criança é conquistado mediante a percepção e os movimentos (como a sucção, o movimento dos olhos, por exemplo).

Progressivamente, a criança vai aperfeiçoando tais movimentos reflexos e adquirindo habilidades e chega ao final do período sensório-motor já se concebendo dentro de um cosmo "com objetos, tempo, espaço, causalidade objetivados e solidários, entre os quais situa a si mesma como um objeto específico, agente e paciente dos eventos que nele ocorrem" (id ibid).

(b) Período pré-operatório (2 a 7 anos): para Piaget, o que marca a passagem do período sensório-motor para o pré-operatório é o aparecimento da função simbólica ou semiótica, ou seja, é a emergência da linguagem. Nessa concepção, a inteligência é anterior à emergência da linguagem e por isso mesmo "não se pode atribuir à linguagem a origem da lógica, que constitui o núcleo do pensamento racional" (Coll e Gillièron, op.cit.). Na linha piagetiana, desse modo, a linguagem é considerada como uma condição necessária mas não suficiente ao desenvolvimento, pois existe um trabalho de reorganização da ação cognitiva que não é dado pela linguagem, conforme alerta La Taille (1992). Em uma palavra, isso implica entender que o desenvolvimento da linguagem depende do desenvolvimento da inteligência.

Todavia, conforme demonstram as pesquisas psicogenéticas (La Taille, op.cit.; Furtado, op.cit., etc.), a emergência da linguagem acarreta modificações importantes em aspectos cognitivos, afetivos e sociais da criança, uma vez que ela possibilita as interações interindividuais e fornece, principalmente, a capacidade de trabalhar com representações para atribuir significados à realidade. Tanto é assim, que a aceleração do alcance do pensamento neste estágio do desenvolvimento, é atribuída, em grande parte, às possibilidades de contatos interindividuais fornecidos pela linguagem.

Contudo, embora o alcance do pensamento apresente transformações importantes, ele caracteriza-se, ainda, pelo egocentrismo, uma vez que a criança não concebe uma realidade da qual não faça parte, devido à ausência de esquemas conceituais e da lógica. Para citar um exemplo pessoal relacionado à questão, lembro-me muito bem que me chamava à atenção o fato de, nessa faixa etária, o meu filho dizer coisas do tipo "o meu carro do meu pai", sugerindo, portanto, o egocentrismo característico desta fase do desenvolvimento. Assim, neste estágio, embora a criança apresente a capacidade de atuar de forma lógica e coerente (em função da aquisição de esquemas sensoriais-motores na fase anterior) ela apresentará, paradoxalmente, um entendimento da realidade desequilibrado (em função da ausência de esquemas conceituais), conforme salienta Rappaport (op.cit.).

(c) Período das operações concretas (7 a 11, 12 anos): neste período o egocentrismo intelectual e social (incapacidade de se colocar no ponto de vista de outros) que caracteriza a fase anterior dá lugar à emergência da capacidade da criança de estabelecer relações e coordenar pontos de vista diferentes (próprios e de outrem ) e de integrá-los de modo lógico e coerente (Rappaport, op.cit.). Um outro aspecto importante neste estágio refere-se ao aparecimento da capacidade da criança de interiorizar as ações, ou seja, ela começa a realizar operações mentalmente e não mais apenas através de ações físicas típicas da inteligência sensório-motor (se lhe perguntarem, por exemplo, qual é a vareta maior, entre várias, ela será capaz de responder acertadamente comparando-as mediante a ação mental, ou seja, sem precisar medi-las usando a ação física).

Contudo, embora a criança consiga raciocinar de forma coerente, tanto os esquemas conceituais como as ações executadas mentalmente se referem, nesta fase, a objetos ou situações passíveis de serem manipuladas ou imaginadas de forma concreta. Além disso, conforme pontua La Taille (1992:17) se no período pré-operatório a criança ainda não havia adquirido a capacidade de reversibilidade, i.e., "a capacidade de pensar simultaneamente o estado inicial e o estado final de alguma transformação efetuada sobre os objetos (por exemplo, a ausência de conservação da quantidade quando se transvaza o conteúdo de um copo A para outro B, de diâmetro menor)", tal reversibilidade será construída ao longo dos estágios operatório concreto e formal.

(d) Período das operações formais (12 anos em diante): nesta fase a criança, ampliando as capacidades conquistadas na fase anterior, já consegue raciocinar sobre hipóteses na medida em que ela é capaz de formar esquemas conceituais abstratos e através deles executar operações mentais dentro de princípios da lógica formal. Com isso, conforme aponta Rappaport (op.cit.:74) a criança adquire "capacidade de criticar os sistemas sociais e propor novos códigos de conduta: discute valores morais de seus pais e contrói os seus próprios (adquirindo, portanto, autonomia)".

De acordo com a tese piagetiana, ao atingir esta fase, o indivíduo adquire a sua forma final de equilíbrio, ou seja, ele consegue alcançar o padrão intelectual que persistirá durante a idade adulta. Isso não quer dizer que ocorra uma estagnação das funções cognitivas, a partir do ápice adquirido na adolescência, como enfatiza Rappaport (op.cit.:63), "esta será a forma predominante de raciocínio utilizada pelo adulto. Seu desenvolvimento posterior consistirá numa ampliação de conhecimentos tanto em extensão como em profundidade, mas não na aquisição de novos modos de funcionamento mental".

Cabe-nos problematizar as considerações anteriores de Rappaport, a partir da seguinte reflexão: resultados de pesquisas* têm indicado que adultos "pouco-letrados/escolarizados" apresentam modo de funcionamento cognitivo "balizado pelas informações provenientes de dados perceptuais, do contexto concreto e da experiência pessoal" (Oliveira, 2001a:148). De acordo com os pressupostos da teoria de Piaget, tais adultos estariam, portanto, no estágio operatório-concreto, ou seja, não teriam alcançado, ainda, o estágio final do desenvolvimento que caracteriza o funcionamento do adulto (lógico-formal). Como é que tais adultos (operatório-concreto) poderiam, ainda, adquirir condições de ampliar e aprofundar conhecimentos (lógico-formal) se não lhes é reservada, de acordo com a respectiva teoria, a capacidade de desenvolver "novos modos de funcionamento mental"? - aliás, de acordo com a teoria, não dependeria do desenvolvimento da estrutura cognitiva a capacidade de desenvolver o pensamento descontextualizado?

Bem, retomando a nossa discussão, vale ressaltar, ainda, que, para Piaget, existe um desenvolvimento da moral que ocorre por etapas, de acordo com os estágios do desenvolvimento humano. Para Piaget (1977 apud La Taille 1992:21), "toda moral consiste num sistema de regras e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por estas regras". Isso porque Piaget entende que nos jogos coletivos as relações interindividuais são regidas por normas que, apesar de herdadas culturalmente, podem ser modificadas consensualmente entre os jogadores, sendo que o dever de 'respeitá-las' implica a moral por envolver questões de justiça e honestidade.

Assim sendo, Piaget argumenta que o desenvolvimento da moral abrange 3 fases: (a) anomia (crianças até 5 anos), em que a moral não se coloca, ou seja, as regras são seguidas, porém o indivíduo ainda não está mobilizado pelas relações bem x mal e sim pelo sentido de hábito, de dever; (b) heteronomia (crianças até 9, 10 anos de idade),em que a moral é = a autoridade, ou seja, as regras não correpondem a um acordo mútuo firmado entre os jogadores, mas sim como algo imposto pela tradição e, portanto, imutável; (c) autonomia, corresponde ao último estágio do desenvolvimento da moral, em que há a legitimação das regras e a criança pensa a moral pela reciprocidade, quer seja o respeito a regras é entendido como decorrente de acordos mútuos entre os jogadores, sendo que cada um deles consegue conceber a si próprio como possível 'legislador' em regime de cooperação entre todos os membros do grupo.

Para Piaget, a própria moral pressupõe inteligência, haja vista que as relações entre moral x inteligência têm a mesma lógica atribuída às relações inteligência x linguagem. Quer dizer, a inteligência é uma condição necessária, porém não suficiente ao desenvolvimento da moral. Nesse sentido, a moralidade implica pensar o racional, em 3 dimensões: a) regras: que são formulações verbais concretas, explícitas (como os 10 Mandamentos, por exemplo); b) princípios: que representam o espírito das regras (amai-vos uns aos outros, por exemplo); c) valores: que dão respostas aos deveres e aos sentidos da vida, permitindo entender de onde são derivados os princípios das regras a serem seguidas.

Assim sendo, as relações interindividuais que são regidas por regras envolvem, por sua vez, relações de coação - que corresponde à noção de dever; e de cooperação - que pressupõe a noção de articulação de operações de dois ou mais sujeitos, envolvendo não apenas a noção de 'dever' mas a de 'querer' fazer. Vemos, portanto, que uma das peculiaridades do modelo piagetiano consiste em que o papel das relações interindividuais no processo evolutivo do homem é focalizado sob a perspectiva da ética (La Taille, 1992). Isso implica entender que "o desenvolvimento cognitivo é condição necessária ao pleno exercício da cooperação, mas não condição suficiente, pois uma postura ética deverá completar o quadro" (idem p. 21).

4) As conseqüências do modelo piagetiano para a ação pedagógica

Como já foi mencionado na apresentação deste trabalho, a teoria psicogenética de Piaget não tinha como objetivo principal propor uma teoria de aprendizagem. A esse respeito, Coll (1992:172) faz a seguinte observação: "ao que se sabe, ele [Piaget] nunca participou diretamente nem coordenou uma pesquisa com objetivos pedagógicos". Não obstante esse fato, de forma contraditória aos interesses previstos, portanto, o modelo piagetiano, curiosamente, veio a se tornar uma das mais importantes diretrizes no campo da aprendizagem escolar, por exemplo, nos USA, na Europa e no Brasil, inclusive.

De acordo com Coll (op.cit.) as tentativas de aplicação da teoria genética no campo da aprendizagem são numerosas e variadas, no entanto os resultados práticos obtidos com tais aplicações não podem ser considerados tão frutíferos. Uma das razões da difícil penetração da teoria genética no âmbito da escola deve-se, principalmente, segundo o autor, "ao difícil entendimento do seu conteúdo conceitual como pelos método de análise formalizante que utiliza e pelo estilo às vezes 'hermético' que caracteriza as publicações de Piaget" (idem p. 174). Coll (op.cit.) ressalta, também, que a aplicação educacional da teoria genética tem como fatores complicadores, entre outros: a) as dificuldades de ordem técnica, metodológicas e teóricas no uso de provas operatórias como instrumento de diagnóstico psicopedagógico, exigindo um alto grau de especialização e de prudência profissional, a fim de se evitar os riscos de sérios erros; b) a predominância no "como" ensinar coloca o objetivo do "o quê" ensinar em segundo plano, contrapondo-se, dessa forma, ao caráter fundamental de transmissão do saber acumulado culturalmente que é uma função da instituição escolar, por ser esta de caráter preeminentemente político-metodológico e não técnico como tradicionalmente se procurou incutir nas idéias da sociedade; c) a parte social da escola fica prejudicada uma vez que o raciocínio por trás da argumentação de que a criança vai atingir o estágio operatório secundariza a noção do desenvolvimento do pensamento crítico; d) a idéia básica do construtivismo postulando que a atividade de organização e planificação da aquisição de conhecimentos estão à cargo do aluno acaba por não dar conta de explicar o caráter da intervenção por parte do professor; e) a idéia de que o indivíduo apropria os conteúdos em conformidade com o desenvolvimento das suas estruturas cognitivas estabelece o desafio da descoberta do "grau ótimo de desequilíbrio", ou seja, o objeto a conhecer não deve estar nem além nem aquém da capacidade do aprendiz conhecedor.

Por outro lado, como contribuições contundentes da teoria psicogenética podem ser citados, por exemplo: a) a possibilidade de estabelecer objetivos educacionais uma vez que a teoria fornece parâmetros importantes sobre o 'processo de pensamento da criança' relacionados aos estádios do desenvolvimento; b) em oposição às visões de teorias behavioristas que consideravam o erro como interferências negativas no processo de aprendizagem, dentro da concepção cognitivista da teoria psicogenética, os erros passam a ser entendidos como estratégias usadas pelo aluno na sua tentativa de aprendizagem de novos conhecimentos (PCN, 1998); c) uma outra contribuição importante do enfoque psicogenético foi lançar luz à questão dos diferentes estilos individuais de aprendizagem; (PCN, 1998); entre outros.

Em resumo, conforme aponta Coll (1992), as relações entre teoria psicogenética x educação, apesar dos complicadores decorrentes da "dicotomia entre os aspectos estruturais e os aspectos funcionais da explicação genética" (idem, p. 192) e da tendência dos projetos privilegiarem, em grande parte, um reducionismo psicologizante em detrimento ao social (aliás, motivo de caloroso debate entre acadêmicos*), pode-se considerar que a teoria psicogenética trouxe contribuições importantes ao campo da aprendizagem escolar.

5. Considerações finais

A referência deste nosso estudo foi a teoria de Piaget cujas proposições nucleares dão conta de que a compreensão do desenvolvimento humano equivale à compreensão de como se dá o processo de constituição do pensamento lógico-formal, matemático. Tal processo, que é explicado segundo o pressuposto de que existe uma conjuntura de relações interdependentes entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer, envolve mecanismos complexos e intrincados que englobam aspectos que se entrelaçam e se complementam, tais como: o processo de maturação do organismo, a experiência com objetos, a vivência social e, sobretudo, a equilibração do organismo ao meio.

Em face às discussões apresentadas no decorrer do trabalho, cremos ser lícito concluir que as idéias de Piaget representam um salto qualitativo na compreensão do desenvolvimento humano, na medida em que é evidenciada uma tentativa de integração entre o sujeito e o mundo que o circunda. Paradoxalmente, contudo - no que pese a rejeição de Piaget pelo antagonismo das tendências objetivista e subjetivista - o papel do meio no funcionamento do indivíduo é relegado a um plano secundário, uma vez que permanece, ainda, a predominância do indivíduo em detrimento das influências que o meio exerce na construção do seu conhecimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Doutoranda em Lingüística Aplicada/IEL

* Ribeiro (2001, 2002); Oliveira ( 2001B); Luria (2001)